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Androids & Demogorgons

TV KILLED THE CINEMA STAR

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22 de Julho, 2017

Once Upon a Time: My (Not So Happy) Ending

Sara

Um dia, quando já ninguém se lembrar deles, Adam Horowitz e Edward Kitsis, os criadores de «Era Uma Vez» [Once Upon a Time no seu título original], vão-nos contar como venderam a alma ao 'Diabo' há alguns anos. E nós vamos perceber como, também por causa deles, tivemos noção do impacto que as redes sociais podem ter na era moderna da televisão. Mas só quando, temporalmente distantes, não forem ameaçados pela omnipresença dos ABC Studios e da montanha de marketing que se estabeleceu e proliferou em torno daquela que, há quase duas décadas, parecia uma ideia impossível: pegar nos contos de fadas da nossa infância e moldá-los à imagem de uma narrativa ousada. Conta a lenda que a primeira temporada demorou dez anos a ficar pronta - já a sua premissa foi destruída muito mais rapidamente.

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Não sou a típica fã da Disney. Cresci bem longe da euforia dos filmes e, ainda hoje, os que vi não preenchem os dedos de duas mãos. Apesar disso, acabei por assistir à primeira temporada de «Era Uma Vez», motivada pela curiosidade que esta ia despertando por aí. Sem grande paciência para filmes românticos onde a princesa, indefesa, depende de um herói para escapar à sua falta de sorte, desde cedo fui atraída pela irreverência do universo de Horowitz e Kitsis. Por essa razão, entre outras, é irónico perceber que, atualmente, não precisamos de ver mais de cinco minutos da série para encontrar uma realidade bem diferente. Ao falar com pessoas que continuam a acompanhar a trama assiduamente, é fácil perceber que fiz bem em desistir de «Era Uma Vez» no início da quinta temporada. A bem da verdade, aguentei mais tempo do que Horowitz e Kitsis, que se renderam algures na terceira.

 

Ainda sou do tempo em que para se conseguir mudar de reino se demorava, pelo menos, 10 episódios. Ou que esse feito, ou desafio, era um momento de tamanha densidade narrativa que se prolongava numa sucessão de discussões, trocas de ideias e uns quantos impossíveis. Seis temporadas depois, viajar no tempo ou no espaço é, em «Era Uma Vez», um dia normal na vida dos outrora pacatos habitantes de Storybrooke. E algumas fugas parecem tão fáceis que se torna ridículo o tempo perdido nas primeiras temporadas. Por outro lado, a história, anteriormente bem estruturada, é agora uma manta de retalhos, onde os acontecimentos se contradizem e algumas storylines - como o 'detetor de mentiras' de Emma (Jennifer Morrison) ou o medo de Snow (Ginnifer Goodwin) aquando do segundo filho - só são lembradas quando dá jeito.

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Na terceira temporada, a narrativa foi levada para a Terra do Nunca e nunca mais voltou. Embora muitos não tardem a centrar as atenções em Neal (Michael Raymond James), o problema não pode ser reduzido ao 'triângulo amoroso' em torno de Emma, uma vez que foi inflamando tudo em redor. Mas isso não quer dizer que deva ser desvalorizado. O ator não foi bem recebido por uma parte da fandom, que se apressou a torcer por Hook (Colin O'Donoghue), algo que, por si só, é tão antigo e natural quanto o mundo da ficção. No entanto, a morte apressada e descaraterizada de Neal, com vários acessos out of character pelo meio, veio contrariar tudo aquilo que, até então, tinha sido prática em «Era Uma Vez». Os twists e obstáculos, que antes encaixavam como um puzzle narrativo perfeito, começavam, pela primeira vez, a ser colados a 'cuspo'. Mas, com o crédito que Horowitz e Kitsis tinham feito por merecer, confiei. Foi esse o meu primeiro erro.

 

Certamente com a ajuda de muitos estudos de audiências, a tendência de agradar a uma massa amorfa continuou. Com «Frozen: O Reino do Gelo» (2013) em hype máximo, a quarta temporada, de 2014, foi dedicada ao filme: as mesmas personagens, sim, mas com o pressuposto de não alterar o contexto em que o filme tinha terminado - isto porque esta 'galinha dos ovos de ouro' não era deles. Foi também por esta altura que se passou a explorar mais a amizade entre Emma e a antiga Rainha Má, Regina Mills (Lana Parrilla), e não apenas no pequeno ecrã. As próprias atrizes, sem grande ligação até essa altura, publicaram no Twitter duas fotografias com uma camisola de Swan Queen (o nome dado ao casal, ou ship, Emma e Regina pelos fãs). Algo irónico, visto que Jennifer já se opusera publicamente ao ship. fan service, numa vontade insaciável de agradar a uma suposta maioria (e às minoras tanto quanto possível) era cada vez mais difícil de ignorar.

once_upon_a_time_quiet_minds.jpgmerchandising é uma parte crucial para a sobrevivência de «Era Uma Vez» que, apesar da quebra de audiências, segue lançada para uma sétima temporada; embora atores fundamentais, como Jennifer Morrison, Ginnifer Goodwin ou Josh Dallas tenham optado por dizer adeus. Fecha-se um ciclo, tenta-se espremer o que resta. Novo tempo, novas personagens, e mais umas quantas convenções com fãs. Sim, há muito que as conferências para fãs e as Comic Cons se tornaram fundamentais para a ABC Studios e companhia. Ao ponto de Rebecca Mader, uma favorita dos fãs, ter voltado a entrar na narrativa depois de uma torrente de críticas à presença de Marian (Christie Laing). [Ah, afinal tratava-se de um plot twist, tudo está bem outra vez!] Entre conferências, momentos exclusivos com atores e outras tantas atividades com preços exorbitantes, a série parece ter-se tornado um mero acessório de algo bem maior.

 

«Era Uma Vez» não é caso único, ou a Bruxa Má do mundo televisivo. Além disso, Portugal é também prova de que conferências com figuras das séries e cinema são uma aposta ganha - a ínfima probabilidade de nos cruzarmos com um ídolo foi trocada por umas dezenas de euros. A mutação da narrativa não é inédita, veja-se «Arrow» ou «Os Diários do Vampiro», que foram cedendo aos casalinhos pedidos pelas audiências. A série da ABC, que é agora emitida pela Netflix no nosso país, não é o problema, mas antes parte de um bem maior. Há já algum tempo. Adam Horowitz fazia-se ouvir no Twitter, indignado com as críticas e negando constantemente o fan service cada vez mais evidente. Já os atores iam fintando o que conseguiam, a reboque de storylines que desafiavam a razão - e a qualidade apresentada nas primeiras duas temporadas. Até nem eles aguentarem mais, ou serem afastados em prol da vontade sem rosto que se mostra nas redes sociais...

 

 

Nota: este artigo foi escrito depois de os meus amigos escolherem, no Facebook, o tema do texto de lançamento do blogue.