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Androids & Demogorgons

TV KILLED THE CINEMA STAR

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08 de Março, 2018

Fargo: o hattrick de Hawley e a 'alegoria' da Guerra Fria

Sara

Tinha tudo para correr mal. «Fargo», o filme, estava ainda bem presente na memória dos cinéfilos que, desde 1996, não resistiam a visitar aquela assombrosa localidade reimaginada pela lente dos irmãos Coen. Além disso, em 2014, Noah Hawley era uma figura fácil de contestar: na bagagem, trazia apenas uma comédia pouco convincente, episódios de «Ossos» e duas séries – «The Unusuals» e «My Generation» – canceladas após uma temporada. Mas, derrotando a crítica e o preconceito, Hawley fez o impensável: foi bem-sucedido. Duas vezes. E agora está de volta para um terceiro round. [Análise ao primeiro episódio da terceira temporada || maio de 2017].

 

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Anunciada, por alguns, como a crónica de uma morte anunciada, «Fargo» foi uma das surpresas mais agradáveis de 2014. Uma espécie de remake, já que do filme de 1996 bebia sobretudo a inspiração, a série de Noah Hawley vincou, desde cedo, o seu estilo muito próprio. Com uma narrativa desenhada para apenas uma temporada, tinha como principais ingredientes Billy Bob Thornton e Martin Freeman, mas sairia reforçada com a revelação de Allison Tolman e a confirmação de Colin Hanks. Não obstante, o principal nome a reter no final desta aventura sangrenta era mesmo o do criador, aquele a que tantos tinham apontado o dedo em sinal de desconfiança. E, se primeiro se queria travar o regresso a Fargo ainda antes de acontecer, a verdade é que, entretanto, só se pensava em embarcar numa nova viagem.

 

Estreada no mesmo ano da estrondosa «True Detective», pode dizer-se que a série de Hawley aproveitou a 'boleia' (merecida, é certo) e foi lançada também numa campanha pela renovação, ainda que antecipando um elenco renovado. De forma contundente, o preconceito de mais-um-remake tinha dado lugar ao hype em apenas oito episódios e a segunda temporada afigurava-se uma inevitabilidade. Com dois Globos de Ouro no 'bolso', o de Melhor Minissérie e Melhor Ator (Thornton), «Fargo» regressou de cara lavada em outubro de 2015, com Kirsten Dunst e Patrick Wilson nos principais papéis. Fazer o impossível uma vez é obra, mas duas vezes é astronómico e está somente ao alcance dos predestinados: Hawley é um deles.

 

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Do choque visual ao argumento mirabolante, a narrativa de Hawley alimenta-se de instrumentos simples para, nos momentos mais improváveis, criar e consolidar o conflito. Apesar do seu caráter inusitado, a história de «Fargo» parece, cirurgicamente, desenhada ao detalhe – para tal, Hawley serve-se das personagens que, muito com a ajuda do diálogo, se apresentam (quase imediatamente) como figuras complexas e a ter em conta no desenrolar da ação. Deste modo, e assim como acontece a quem sofre várias vezes do mesmo 'mal', também nós, espectadores, criamos uma espécie de anticorpos aos truques de Hawley. Presos como sempre pelo seu ritmo acutilante, tornamo-nos mais atentos por hábito e, no jogo de imagens e palavras de «Fargo», sabemos que nada é introduzido por acaso. Ao jeito de uma receita pensada ao pormenor, o criador e argumentista – que na segunda temporada até se chegou à frente para realizar um episódio (o primeiro da carreira) – equilibrou os universos visuais e narrativos para trazer, novamente, uma das histórias mais viciantes dos últimos anos.

 

Mas nem só de «Fargo» vive Noah Halwey. Provando, uma vez mais, que gosta de correr riscos, agarrou o desafio de trazer a primeira série X-Men para a televisão, «Legion», exibida no nosso país pela FOX. Não lhe chegava testar os fãs dos irmãos Coen, e decidiu arriscar (e muito!) no mundo das comics: ao seu estilo, pois claro. Sem receios ou comodismos, voltou a pegar num universo pré-existente para o reclamar como seu, com o seu imaginário muito próprio a respirar em cada centímetro de «Legion». A narrativa 'inquieta', e capaz de nos deixar também inquietos, é já imagem de marca do autor que, em três anos, se assumiu (e consolidou) como uma das figuras mais proeminentes da televisão. Longe da 23ª posição alcançada por «Fargo» no top IMDb, a série está, ainda assim, entre as 150 melhores, na 143ª posição – e já foi renovada para uma segunda temporada!

 

Nunca digas nunca voltes a um lugar onde foste feliz

 

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"Esta é uma história verídica. Os eventos descritos neste filme tiveram lugar no Minnesota em 2010. A pedido dos sobreviventes, os nomes foram alterados. Por respeito aos mortos, o resto foi contado exatamente como aconteceu". Ainda antes de Ewan McGregor se mostrar no pequeno ecrã, as letras desenham-se no manto branco que, incontornavelmente, habita Fargo. No dia 30 de abril, data de estreia da série em Portugal, o TVSéries 'passou' esta mentira, que tem sido difundida desde o filme dos irmãos Coen. «Fargo» nunca foi uma história verídica, mas antes uma reinvenção – arriscada e inusitada – de um crime.

 

A terceira temporada da criação de Hawley começa longe da localidade: um cidadão, aparentemente comum, é interrogado em 1988, no Berlim de Este. O discurso flui atabalhoadamente, com uma falsa naturalidade, e nós somos apanhados de surpresa. Prometeram-nos uma viagem a Fargo, mas ali estamos, num escritório desconhecido, a testemunhar a condenação – talvez injusta – de um homem. Num plano desenhado com mestria, novamente com Hawley na realização, a transição para Fargo faz-se com uma transição fulgurante e bem construída. E, mais uma vez num escritório, agora numa altura bem mais contemporânea, eis que chega a aguardada voz de Ewan McGregor. O ator escocês dá vida a dois irmãos gémeos: Emmit, um empresário bem-sucedido, e Ray Stussy, um polícia careca que culpa o irmão pela sua situação 'humilde'. No centro, estão selos – mas não são uns selos quaisquer...

 

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Não tardaram a surgir as primeiras comparações entre a relação dos Stussy e a Guerra Fria, com a terceira temporada a ser, inclusivamente, entendida como uma possível alegoria. Dois lados vivem um conflito aparentemente 'político' e mais jogado nos bastidores do que no campo de batalha. A julgar pelo episódio piloto, os problemas começam logo na comunicação entre intervenientes, mas também na forma como a informação chega ao espectador. Na tentativa de empatizar, ou não, com as personagens em cena, somos constantemente iludidos pela imagem que passam e pelas escolhas que fazem. Mais uma vez, Hawley apresenta homens e mulheres complexos, que não são necessariamente bons ou maus, pelo que falarmos em vilões ou vítimas será perigosamente redutor.

 

Como não podia deixar de ser, «Fargo» move-se muito para além do suposto núcleo central, sendo uma questão de tempo até acabar tudo misturado! Findo o episódio piloto, já todas as personagens parecem, irremediavelmente, interligadas. No entanto, ao tentarmos recriar os passos da trama, totalmente inusitados e, mesmo assim, complexos, apercebemo-nos do brilhante trabalho que é feito por Hawley. Ray, que está envolvido com uma das criminosas em liberdade condicional que tem de acompanhar, só pensa em vingar-se de Emmit. O empresário, que teve de recorrer a um empréstimo de um milhão de dólares um ano antes, está agora envolvido num negócio, no mínimo, questionável. É VM Vargas (David Thewlis) o portador da má notícia: o ator rouba, aliás, a cena na sua breve aparição no primeiro episódio. E também as atrizes Carrie Coon e Mary Elizabeth Winstead prometem dar que falar nesta nova incursão em Fargo.

 

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Costumam dizer que nunca devemos voltar aos lugares onde fomos felizes. Como referimos, ao ser associado a «Fargo» (1996), o remake foi, inclusivamente, 'afastado' com base nesse argumento fácil. No entanto, e no arranque da terceira temporada, Hawley prova novamente que mereceu o voto de confiança. Sem a ambição de imitar os Coen, o criador conquistou já o seu espaço em Fargo e promete ter vindo mesmo para ficar. Nós, que gostamos de boas séries, agradecemos.

 

 

Texto originalmente publicado na Metropolis.