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Androids & Demogorgons

TV KILLED THE CINEMA STAR

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03 de Agosto, 2017

American Gods: Os Deuses Devem Estar Loucos

Sara

Era a série de que mais precisávamos. Nós é que não sabíamos. Adaptação televisiva do livro publicado por Neil Gaiman em 2001 conta com um elenco de luxo e serve de alegoria a algumas das questões mais pertinentes da atualidade. Dos Vikings à tecnologia de ponta, será que a humanidade está preparada para os deuses que louva?

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No filme «Os Deuses Devem estar Loucos» (1980), com argumento e realização de Jamie Uys, a vida de uma tribo isolada muda irremediavelmente quando um dos seus elementos contacta com 'tecnologia' pela primeira vez, neste caso uma garrafa de Coca-Cola. Julgando tratar-se de uma dádiva divina, partilha-a com a sua tribo, que a usa para diversas tarefas, mas depressa os companheiros começam a lutar por causa da garrafa. É então que ele a tenta devolver aos seus deuses. À boleia de uma boa dose de comédia, há dois 'infernos' que chocam: a modernidade e a dureza do deserto de Kalahari: "Parece um paraíso, mas é, na verdade, o deserto mais traiçoeiro do mundo", diz, a certa altura, o narrador sobre aquele local.

 

Este é apenas um dos exemplos em que o cinema e a televisão arriscaram novas abordagens aos deuses e, mais concretamente, àquilo que o ser humano idolatra no seu quotidiano. Todavia, há muito que a reverência deixou de ser exclusiva aos deuses: a sociedade tem vícios e atitudes que lembram a devoção que se entregava, e entrega, aos deuses das diversas religiões. Na arte, esse contexto é ultrapassado e adaptado às exigências da narrativa, com os autores, da literatura ao grande ecrã, a aproveitarem a liberdade criativa para, ao amplificá-la, se debruçarem sobre a realidade em que vivem. Numa espécie de alegoria dos tempos modernos, onde o homem é, ao mesmo tempo, veículo e intermediário de uma suposta divindade, usa-se o sagrado para criticar a própria humanidade.

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Foi isso que fez – de forma sublime, convém dizê-lo – Neil Gaiman no seu livro Deuses Americanos, publicado pela primeira vez em 2001. Mas o interesse na temática não era novo. Já em Good Omens, de 1990, escrevera, a quatro mãos com Terry Pratchett, o nascimento do diabo como sinal trágico do fim do mundo e a consequente luta entre o Bem e o Mal, o sagrado e o profano. Voltou à inspiração divina dois livros e 11 anos depois, imaginando uma guerra épica entre os deuses antigos e modernos, vivida no campo de batalha mais inesperado de todos: o planeta Terra. E sem recurso, equitativo pelo menos, aos poderes que lhes deram nome e prestígio.

 

Da página para o pequeno ecrã passaram-se 16 anos e, pela mão do canal Starz nos Estados Unidos – e da Amazon em Portugal –, o confronto divino ganhou cor e densidade, mas não perdeu atualidade. A realidade e a utopia passeiam-se no ecrã, revelando (ou escondendo) a crítica e a importância do nosso olhar crítico sobre o mundo e nós mesmos. No presente, com os Estados Unidos de Donald Trump, o terrorismo e o imparável avanço tecnológico, talvez a trama de Deuses Americanos nunca tenha feito tanto sentido como agora. Ao leme estão Bryan Fuller (criador de «Wonderfalls», «Dead Like Me», «Pushing Daisies» e «Hannibal») e Michael Green (criador de «Reis», protagonizada por Ian McShane, que integra «American Gods»). Fuller, aliás, terá abandonado «Star Trek: Discovery» para se dedicar em exclusivo a este projeto.

 

A ESCURIDÃO COMO MEIO DE VER A LUZ

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Em «American Gods», tudo começa quando, ao jeito de um golpe de misericórdia premonitório, Shadow Moon (Ricky Whittle) sai da prisão alguns dias antes do previsto, na sequência da morte da mulher e do melhor amigo num acidente. Quando a vida por que esperou atrás das grades se revela impossível, Shadow não tem nada a perder, mas, ainda assim, esforça-se por esconder a violência que parece querer escapar a qualquer momento – sobretudo quando a funcionária da companhia aérea complica a sua chegada a tempo ao funeral. É então que um homem misterioso, mais velho, consegue – qual truque de magia sem truque – ludibriar a mulher de temperamento difícil, graças à sua idade avançada.

 

Ao encontrá-lo depois na primeira classe do voo, Shadow não sabe se há-de admirá-lo ou descarregar nele todas as frustrações em que está mergulhado. Quando uma conversa, aparentemente inocente, se torna cada vez mais profunda e estranha, Shadow tenta atribuir-lhe um sentido lógico. Sem sucesso. O misterioso Mr. Wednesday (Ian McShane) – que assim se apresenta depois de saber que é quarta-feira (wednesday em inglês) –, sabe mais sobre a vida do ex-presidiário do que seria suposto. No meio do choque, apresenta a Shadow uma oferta de trabalho muito questionável, mas este recusa-a, acreditando que, depois de aterrar, haverá um pouco de normalidade à sua espera. Tal não se verifica, sendo que, pelo caminho, Shadow se vê jogado em dramas humanos e paranormais.

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Conflito humano antes de mostrar ser divino, a série explora a impotência do indivíduo perante o destino, que parece 'troçar' dos pequenos raios de luz que vão surgindo por entre as nuvens. Ao mesmo tempo, a perceção de que tudo é efémero, até as emoções e as certezas do quotidiano, choca com a incapacidade de o ser humano contrariar a sua falta de sorte. Assim, destino ou não, Shadow vê-se 'empurrado' para trabalhar com Wednesday, regressando inevitavelmente à vida do crime. O que ele não sabe é que a questão é bem mais complexa (e ambígua) do que isso.

 

Na verdade, Wednesday é Odin, o deus dos deuses da mitologia nórdica. Ele, tal como os restantes deuses antigos, foi renegado para a 'vulgar' condição humana, enquanto os deuses da modernidade foram ganhando cada vez mais força. A oração, ou adoração, dos homens é o combustível que torna os deuses aquilo que são – pelo que, ao adorarem os novos deuses (tecnologia, media, etc.) e não os antigos, estes ficam mais fracos. Tecnologia e Media, aqui corporizados pelos atores Bruce Langley e Gillian Anderson, surgem como divindades mas apontam, ainda assim, as suas culpas diretamente para nós: estão cada vez mais fortes porque as pessoas as idolatram desenfreadamente. De um lado, dá-se a multiplicação de falsos deuses – como os vícios –, e do outro o poder das entidades divinas retira-o aos homens, provocando a sua desresponsabilização.

 

 

 

Este artigo foi originalmente publicado na edição nº50 da Metropolis, de junho de 2017. Texto completo na revista.