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Androids & Demogorgons

TV KILLED THE CINEMA STAR

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04 de Março, 2019

A «Crazy Ex-Girlfriend» De Que Vamos Ter Saudades

Sara

Desde pequenos que ouvimos esta frase à boca-cheia: "só damos valor às coisas quando as perdemos". É provavelmente esse o destino fatal da série «Crazy Ex-Girlfriend», a aposta improvável da CBS que chegou a Portugal pela mão da Netflix. Com a última temporada já em andamento, e antes que descubram esta pérola e não me deem os devidos créditos, fica já o alerta: vejam isto antes de ser um clássico da nossa geração. Ou percam o comboio e depois corram atrás do prejuízo.

 

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Não gosto de musicais, mas a verdade é que os vejo (podem ler sobre isso aqui). No entanto, a Rachel Bloom, protagonista e cocriadora de «Crazy Ex-Girlfriend», obrigou-me a ir ainda mais longe: de repente lá estava eu, a pessoa alérgica a cenas cantadas for no reason a meio de um episódio, a recomendar esta série aos amigos. E a lidar com o preconceito e a rejeição de musicais ou, no caso, séries com músicas soltas pelo meio. Foi nessa altura que percebi o quão difícil deve ter sido, para a Rachel, ser bem-sucedida no pitch do que ali vinha. Sobretudo tendo em conta que, quando tentou vender a ideia à Netflix, a reunião de Rachel aconteceu logo após Jane Fonda e Lily Tomlin apresentarem a sua épica «Grace and Frankie» . É entrar em jogo já com a derrota certa.

 

A cada nova rentrée televisiva, critica-se a ausência de vozes femininas e a proliferação do cliché do homem branco. E nem mesmo «Orange is the New Black», «New Girl» ou «GLOW» vieram acalmar a pertinência desta questão. Rachel Bloom já escreveu músicas sobre diarreia, a dolorosa preparação para encontros amorosos e até sexo durante o período (a versão completa foi proibida pelo canal, mas há um tease em dois episódios e a versão completa na net). Grande parte do segundo episódio da quarta temporada é sobre a colocação dos tampões usados na sanita ou no lixo – não há muitas séries que ousassem sequer mencionar a palavra 'tampão', quanto mais discutir sobre onde este deve ir parar! Claro que não são os temas mais 'agradáveis' para se fazer humor, mas há temas masculinos igualmente 'desinteressantes' que servem o humor televisivo e cinematográfico há décadas. O próprio nome da série, aliás, incide num estereótipo machista, e piada recorrente entre homens: o da ex-namorada louca e desequilibrada. 

 

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O mote da série é totalmente descabido, ainda que, no meio da sua complexidade hiperbólica, acabe por fazer sentido. Rachel Bloom tem, aliás, a preocupação de justificar o papel da protagonista, culpabilizando-a e responsabilizando-a pelos seus atos. Entre o caos que é a existência de Rebecca Bunch, a sua obsessão por Josh Chan (Vincent Rodriguez III) e os traumas com os pais, há uma discussão muito pertinente sobre a saúde mental, o comprometimento de cada um com o seu próprio bem-estar e da mulher com a sua intimidade. Esta é uma reação em cadeia que vai sendo preparada temporada após temporada, até culminar numa despedida mais serena mas que, para já, ainda não se sabe onde vai parar. Costuma dizer-se que quem canta seus males espanta, mas em «Crazy Ex-Girlfriend» a música tem uma ação bem mais complexa.

 

Há comédia, drama, romance e até terror. E há acontecimentos aparentemente inexplicáveis que ganham explicação na genialidade que é a escrita de Rachel Bloom, Aline Brosh McKenna e companhia. Por detrás do fogo de artifício, das músicas inspiradas por outras e reinventadas à imagem da série, está uma estória que terá de ecoar na história da TV. Rachel Bloom dificilmente conseguirá replicar um feito desta dimensão, pelo menos musicado, mas a grandiosidade de «Crazy Ex-Girlfriend» ainda não atingiu o seu ponto mais alto. Precisa de tempo, de alguma distância, para se ter noção da importância que a série, rejeitada inicialmente pela Showtime e pela Netflix, teve para a discussão do papel da mulher na TV e fora do ecrã.

 

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Já pus os meus amigos a ouvir músicas sobre infeções urinárias, rap battles entre advogadas de origem judaica, a generalização dos homens e sobre como as lutas na vida real são bem menos impressionantes do que as do cinema. Do outro lado, muitas vezes a reação é simplesmente "gostas mesmo dessa série". Pois gosto, muito mesmo. A tal ponto que, mesmo não gostando particularmente de cenas cantadas for no reason, acabei de escrever um artigo inteiro sobre uma série musical. Vão a correr ver o piloto enquanto não é fixe. Pode ser que assim o número de fãs em Portugal cresça e eu consiga ver este cast espectacular ao vivo [sim, esta malta anda em digressão pelos States a cantar músicas sobre infeções urinárias e o período].

 

 

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